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A Melhor Hora do Meu Dia

  • chgfreitas
  • Mar 19, 2024
  • 6 min read

Updated: Jul 24, 2024

O café da manhã é uma boa medida das fases de minha vida. Minha primeira recordação dessa refeição é sobre os ovos quentes e a “geléia” de mocotó Colombo servidos a meu pai, em minha tenra infância, enquanto ainda não sentíamos os abalos do terremoto por vir.


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Photo: K2PhotoStudio, via Shutterstock, Stock Foto ID: 380603521


Após o cataclisma que abalou os alicerces de minha família, o café da manhã e outros símbolos da boa vida familiar se foram e somente tive contato consistente com essa refeição alguns anos mais tarde. Infelizmente, então, essa refeição, de maneira geral, resumiu-se a um café com leite, pré-misturado e docíssimo e a um pão de segunda com margarina, na escola militar.


Nunca me acostumei ao sabor do leite, que sempre associei ao líquido doce e morno das mamadeiras. Assim, meus anos de vida militar resumiram-se, no quesito café da manhã, na melhor das hipóteses, à escolha entre tal mistura ou um café preto da pior qualidade. Essa situação somente seria alterada, muitos anos depois, em um Kibutz e em uma vila dos Alpes. Em Israel, tive contato com um pequeno-almoço diferente, repleto de iogurtes, queijos frescos, azeitonas, tomates, pepinos, pão pita e muitas frutas. Na Áustria, descobri uma rica variedade de pães, frios, manteiga fresca e café preto bem feito. A partir de então, fiz as pazes com essa refeição e redescobri seu valor social: um momento de alimentação saudável ou saborosa e de confraternização com as pessoas próximas, de nosso convívio diário.


É essa a definição que minha esposa dá ao nosso café da manhã: a melhor hora de nosso dia. Entre queijos frescos, torradas, bom café preto, frutas e geleias, tudo sem exagero, confabulamos sobre a vida, enquanto ouvimos a CBN, a BBC, a Radio France, a CNN, ou o Globo Rural, conforme o dia da semana e nosso humor. Daí surgem conversas e ideias interessantes, sobre nós e as pessoas, sobre o país, o mundo e o estado das coisas. Muitas ideias doidas, associações tresloucadas e reminiscências afloram, a partir das quais nos perdemos em deliciosas conversas.


Foi da comparação entre o tom de cobertura dos eventos jornalísticos, pelos apresentadores da CBN com os da BBC e da Radio France, que saltamos para questões sobre nosso engajamento, no Brasil, em discussões de caráter coletivo — ou que ao menos deveriam o sê-lo. Enquanto nossos apresentadores — quem sabe influenciados pelo estilo de jornalismo estadunidense ou, em certa medida, por legítima afinidade com aquela cultura — apresentam o noticiário em um formato de quase entretenimento e de forma engajada; os britânicos e franceses, ao menos dessas duas rádios, o fazem de forma destacada e formal, com enfoque especialmente nos eventos. Enquanto no primeiro caso, conta-se quase uma estória; no segundo, relata-se um ocorrido.


Verdade que talvez seja relevante considerar-se em que medida a vida política do Brasil, transformada em quase uma novela, não contribuiu para esse estilo atual de nossos apresentadores de televisão. Há que se comparar o William Bonner e a Fátima Bernardes dos anos 1990 aos dos dias atuais — ela inclusive optou incondicionalmente pelo entretenimento. O fato é que hoje, parecemos mais preocupados com os próximos capítulos de uma trama, do que sobre como poderíamos de fato sair dessa trama.


O salto agora será grande e exigirá bondade e esforço do leitor, pois pergunto em que medida nossa formação,ou não formação, como nação pode contribuir para esse fenômeno? Tomo a liberdade de ignorar a aparente ruína da democracia e da política que tem sido verificada em outras paragens, em maior ou menor grau. Nos EUA, há Trump versus Biden, na Holanda, França, Reino Unido, Hungria e Polônia — limitando-nos a exemplos “ocidentais” — tons de extrema-direita vem ameaçando tudo que associávamos à estabilidade da relação entre democracia e alguma versão de capitalismo.


Meu argumento é que se fixarmos o foco da discussão sobre o estilo dramático-jornalístico de nosso tempo, no Brasil, à questão da falência da política e da democracia, corremos o risco de contemplar sintomas comuns aos pacientes, mas cujos fatores que influenciam o tema provavelmente serão diversos e, por vezes, particulares a cada caso. O ponto que desejo fazer é sobre uma característica local, já bem discutida na academia: a ausência de um sentido coletivo na sociedade brasileira.


Em “Os Bestializados”, José Murilo de Carvalho analisou a questão da cidadania, das agendas envolvidas em crises do Rio de Janeiro, nos primórdios da República. Em certa medida, sua análise expõe a falta de um cimento social em torno de um bem comum, de uma causa amplamente coletiva, precisamente um dos pressupostos do Estado moderno, particularmente construído sobre teses contratualistas.


Partamos do argumento batido de que o que nos distinguiria dos estadunidenses seria nosso tipo de colonização. Enquanto por lá teria ocorrido uma ocupação territorial por novos grupos sociais, com interesses de construção de uma “nova” sociedade; aqui teria corrido uma ocupação movida por interesses exploratórios, ou seja, o interesse primário não seria a construção de uma comunidade, mas o uso imediato dos recursos, ainda que por intermédio do esforço alheio.


Enquanto em outras paragens, houve uma transposição de grupos sociais em números consistentes, que possibilitassem uma igual transposição de práticas e expectativas sociais, entre elas de um bem comum e sua busca; aqui ocorreu uma ocupação por indivíduos com interesses manifestamente individuais — importante notar a escolha do termo “individual”, pois se entende que um interesse possa ser privado sem que se renuncie a considerações coletivas (a ideia de função social da propriedade não é uma invenção da Constituição Federal de 1988; ela já estaria presente em considerações de pensadores como Adam Smith e John Locke, queríamos ou não reconhecer isso).


Contudo, a diferença entre transposição e ocupação pode ser entendida como um fator relevante na forma como o Estado e a nação são construídos. Enquanto no caso estadunidense é possível perceber como os termos construção do Estado (“state building”) e construção da nação (“nation building”) tendem facilmente a confundir-se; no caso Europeu (de nossos colonizadores, gostemos ou não disso), a existência da nação muitas vezes é o motor gerador da construção do Estado. Por outro lado, em Pindorama, a coisa mais próxima de nação que aqui chegou, até o século XIX, foram os africanos, de quem herdamos trações e tradições maravilhosas — apesar de todo nosso racismo —, mas que para cá vieram desterrados e sem qualquer ideia de identidade, a não ser com relação a sua origem comum, no mesmo continente, e aos rótulos nefastos que os não negros lhes atribuíram.


Nesse cenário, a única fonte de cimento social que seria razoável esperar seria a solidariedade humana, de fundo religioso ou de qualquer outra fonte cultural, menos a ideia do bem comum fundamental das teorias contratualistas e do Estado moderno construído, essencialmente, sob os alicerces de uma nação ou simultaneamente a ela. Nesse sentido é que a obra de Murilo de Carvalho ganha importância, pois apresenta uma argumentação esmiuçando a construção de um Estado sem a consolidação prévia, tampouco, concomitante da nação.


Sejamos, então, sinceros, quais os movimentos que apontam no sentido de uma nação, no Brasil: Getúlio e seu Estado Novo, pontualmente com Villa-Lobos, Ari Barbosa, Domingos da Guia, etc.? Os Modernistas de 22 e a pujança de uma São Paulo, de imigrantes ou quatrocentona, em ascensão? Uma capital federal com uma natureza abençoada e uma princesinha do mar que atraiu e atrai tanta atenção do exterior e alguma inveja de locais? O futebol, a seleção canarinho e seu passado de glórias, que parece nunca mais voltará? O ufanismo do regime militar, por si só evidência da herança doutrinária e ditatorial dos “jovens turcos” do exército brasileiro e, não por coincidência, lembrando o Estado getulista? A controversa TV Globo? A ascensão do neopentecostalismo, sua força política e viés de dissenso social?


Não, nada disso teve sucesso em moldar uma nação. Pior, o próprio andar da carruagem, neste século XXI, de possibilidades infinitas imprevisíveis, parece nos afastar cada vez mais de nossa dimensão humana, especialmente por conta da forma como novas tecnologias vem influenciando o convívio social e comportamentos coletivo e individual. Parece que o Brasil parece se afastar, cada vez mais, de qualquer cimento de ordem social ou humanística. Seja da pretensão a um bem comum ou à solidariedade. A empatia parece pertencer ao passado.


Assim, não podemos nos surpreender com noticiários tornados entretenimentos. Não há qualquer vontade individual ou coletiva, com força política, mas apenas a curiosidade de acompanhar o desenrolar de assassinatos, feminicídios, tramas político-criminais ou desventuras de influenciadores digitais, em convívios bizarros, em casas monitoradas. Nada mais semelhante à maratona de um “Breaking Bad”, “House of Cards”, ou “Succession”. Sucessos de público que todo editor de telejornal inveja e tão verídicos quanto os demais “docu-filmes” que pululam os serviços de streaming.


Mas com licença, para não surtar, felizmente chegou a hora: vou tomar meu café da manhã. Saravá!

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